sexta-feira, 25 de novembro de 2011

VENÂNCIO II

Deu vau o rio, dobramos no Laçador e viramos na Tabaí/Canoas. Quase uma hora de viagem e já reconhecemos alguns lugares e nomes. 
Num pequeno lançante, hora do caldo de cana, o local muito típico, cheio de tarecos de cerâmica, garças, anões, vasos. Dali tinha levado, 25 anos antes, uma gamela de madeira branca, o pai foi conferir para ver se era de Açoita Cavalo, garantia para não trincar. Acho que era,  se manteve anos a fio, só entortou um pouco porque ficou na beira da churrasqueira e esquentou desparelho.
Apareceram as placas de Venâncio, aí perguntei pela antiga cutelaria, para saber paramos num posto Ipiranga, ehehe, eles sabem de tudo. Sabiam.
Nos indicaram o galpão da fábrica, até simples, com uma pequena sala de demonstração e vendas.
Poucas opções estavam lá, é que quase tudo tinha sido vendido, a especialidade é de facas especiais para presente e espetos para costelão e assadeiras profissionais. Então amigos, iniciei aquela falação sobre a historia do meu pai, e tal. Contei que ele tinha uma expressão “depois que apareceram estas porqueras não se acha mais uma faca que preste”. Ele se referia a gigantesca metalúrgica que vendia tudo que é coisa, mas de muito baixa qualidade. 
Enveredei, mais ainda, nas abobrinhas, disse que era escritor, tinha um blog, ahahahaha, e feito uma crônica da lendária faca.
Sem saber como se livrar do turista persistente, ela confirmou que a fábrica estava na quarta geração e tal, e aí “achou”um punhado de facas e bainhas.

Veio junto uma bainha artesanal, de couro cru, de ovelha, carésima também. Prende a ponta fina com uma trança de quatro, em tento finíssimo, de lonca, rematando em botão, coisa especial. A mesma lonca faz um trançado nos demais pontos. A costura vai num cordão ensebado de rim de ovelha.

Vendo tamanha disposição para jogar dinheiro fora, cobrou uma fortuna, e eu saí feliz da vida. Agora tenho uma Venâncio de fábrica.

Gracias

Selso

terça-feira, 1 de novembro de 2011

"Venâncio"



Num gesto reflexo levou a mão ás costas, a “Venâncio”, carneadeira, não estava lá.
Para lembrar, tinha um aço zincado, tipo baioneta, azulado. Afiava numa pedra natural, quem conhece acha fácil, um dia olhava o gado encostado na cerca da invernada, não é que estava alí. 
Uma lata de água ficava perto, molhava a pedra e ia passando de um lado e de outro, segurava pelo cabo e a outra mão na ponta em pressão regular, angulado leve para “tirar a testa”, shim e shim ia gastando pedra e faca tudo junto, um som mágico, horas a fio.

Tem uma “cência” o movimento, ponta, meio e fim numa inclinação apropriada. Se afinar demais “dobra”o fio, se engrossar “fica cega ligeiro”. Mais água, shim e shim, afiava bem a ponta, era para sangrar, mais forte no meio, para esquartejar, no terço final engrossava, bom no corte de um espinhaço de ovelha e algum tutano.

Duas coisas a Venâncio jamais viu, esmeril e cozinha, era lugar para estragar as facas, dizia, botavam nas panelas e faziam “dente” a toa, batendo em osso buco. Mala suerte, de repente não se viu mais a carneadeira de confiança. Essas coisas acontecem.

Rodando por aí, me bati, de novo, em terras orientais, num representante de cutelos afamados. Saí com um conjunto, faca e chaira, de valor.

Material de primeiro uso, um sábio prático, olhou com interesse.
Pegou, assim, analisando o equilíbrio, agradou um leve peso frontal, valoriza o movimento de corte. Com a unha tirou um “canto” revelador da boa têmpera. Mirou o alinhamento, cabo de osso, humm. Aquele tom azulado, pode se ajeitar, numa boa mão.

Na velha bancada de angico, a pedra de arenito, gasta é verdade, ainda está lá. Quase outros tempos, a lata dágua e um tinir cadenciado, shim, shim, na manhã inteira. Por vezes parava, aquelas mãos fortes assumiam poder de afinador, pelo tato ia verificando o serviço. Só dava como pronto com um teste especial, com um movimento simples tirava uma lasquinha do calo da mão esquerda, desta forma mesmo.

Cuidando é só chairar de vez quando”, continua assim até hoje.

Abraço amigos,