terça-feira, 1 de abril de 2008

Lei do Boi.......inclusão social de antigamente

Meu pai tinha um projeto, comprar terra, “quatro quadras de sesmaria”, sonhava, era arrendatário. O plano da mãe era educar os filhos, tinha estudado num colégio de freiras, sabia como era.
Muita energia, e dinheiro mesmo, foi gasto com o estudo dos guris. Alfabetização, em casa, não havia escola no Seival daquele tempo, uma tia improvisava uma classe, vizinhos vinham , em petiços o apelido para os cavalos pequenos.
Depois, escola ferroviária, na Bomba de Candiota, 60 km de Bagé, acesso por trem, classe geral, vários níveis numa mesma sala. A professora morava na escola, era solteira. Episódio inesquecível foi uma visita do padre, única em quatro anos, rezou missa, confessou, grande cerimônia e intensos treinos de versos e comportamento para ele ter uma boa impressão.
Cumprida a fase do primário o que fazer, a mãe insistia na continuidade da educação, naquele tempo não se cogitava em alugar casa ou apto. Mas havia uma solução, o Seminário, padres e freiras havia muitos na família. A regra da colônia era, filhos mais velhos estudavam o primário e ficavam em casa trabalhando, valia o mesmo para as filhas. Os mais novos iam para o seminário, no caso masculino. Tinham sorte, trabalhavam pouco, só nas férias, e estudavam filosofia e teologia. Assim, um dia, eu e mais dois irmãos, fomos com o pai direto na casa paroquial de Bagé para uma entrevista. “Que interessante, os três tem vocação” disse o padre André, meu pai retrucou, o irmão dele era padre e duas irmãs freiras, havia um precedente religioso a ser considerado, tínhamos sofrido “influência”. Ficamos cinco anos, li coleções inteiras de livros clássicos e de historia romana, grega e outros. Nomes como Voltaire, Russeau, Maquiavel, Da Vinci, Michel Angelo, imperadores romanos eram comuns. Latim, francês, teatro, oratória, trabalho voluntário, futebol com os presos em Bagé, tudo era parte da formação.
Fatalidade o Seminário fechou, um conhecido da família sugeriu o Colégio Agrícola de Pelotas. Fui, de ônibus, me inscrever, passei a noite numa pensão da frente da rodoviária, ali perdi, uma famosa correntinha de ouro presente da tia. Tinha uma espécie de vestibular, um dos critérios era a Lei do Boi, apelido para a inclusão social de antigamente, filhos de agricultores pobres tinham precedência não lembro que nível. Mais três anos, saímos formados técnicos agrícolas.

Na continuidade, vestibular, para agronomia na UFpel, outra vez a Lei do Boi, funcionou, lembro de certidões dos sindicatos rurais, o pai não tinha terra, arrendatário, como disse antes. Todos os irmãos que foram para o Seminário saíram formados na UFpel, dois entraram na tal lei.
Bem mais tarde, com um casal de filhos, 5 e 7 anos, “entrei numas” de que eles tinham de ter uma formação tão boa que pudessem passar no vestibular de alguma universidade federal. Era o meu propósito. Desta forma iniciou um tipo de “treinamento”, estudos extras de idiomas, computadores, internet, música, leituras diversas e xadrez. Para dormir, todos os dias, um dos pais lia histórias infantis. Minha família era sócia de uma locadora de livros, obras e mais obras, viviam empilhadas nas mesinhas de cabeceiras. Tudo isto, claro, somando com o melhor colégio da cidade, era o mínimo. A formação incluiu intercâmbio no exterior e viagens diversas.

Deu certo, os dois inscreveram-se, uma única vez, na universidade federal de Santa Catarina e conseguiram vaga nos cursos escolhidos, desta vez por seu próprio esforço, na oportunidade não se falava ainda em modernos tipos de inclusão social.

Neste 28 de março, rolou festa geral, mestrado e graduação.

O pai, idoso, não veio, mas seu projeto está completo, tem as “quatro quadras de sesmaria”.

A mãe, também não pode vir, tem um corredor da casa com as fotos dos filhos formados, dos netos formados, todos naquela roupa preta com chapéu representando o curso.
Sabemos, o primeiro compromisso de cada formando é mandar a foto para ser incluída na “galeria”. O projeto andou bem.

Duração desta história: 56 anos.

3 comentários:

Anônimo disse...

Poxa paps,
adorei mesmo! fiquei ateh emocionada lendo... acho q tens mesmo q ficar orgulhoso, tanto dos seus pais, qt de vc mesmo, qt da gente, os filhos...
um beijao
Rêzinha.

Anônimo disse...

Olá Paps,
finalmente passei pra acompanhar seu blog de sucesso.

Não sabia dessa história de Lei do Boi, olha só, quem seríamos hoje sem ela hein? Pra ver como ações afirmativas não existem sem razão.

Abraço,
Gus

Anônimo disse...

Prezado Selso,

Linda história de vida e feliz por ter acompanhado parte dela, no CAVG e na Faculdade de Agronomia !
Um grande abraço e parabéns pelos textos! Estão ótimos!
José Nei